sábado, 9 de fevereiro de 2013

O BOTEQUIM ONTEM E HOJE

Caçula de uma família de oito filhos, quando eu tinha quinze anos, morava num apartamento que ficava em cima de um botequim do bairro da Penha, no Rio,   que era frequentado por meu pai e dois de  meu irmãos,   O bar  tinha inúmeros outros frequentadores assíduos, e eu descia à noite para ouvir as conversas dos homens jovens e maduros, recheadas de acontecimentos, "causos", histórias pitorescas, inúmeros relatos sobre aventuras sexuais, curiosidades de impressionar qualquer adolescente que, como eu, estivesse a descobrir o mundo.  
Carlos, o mais novo de meus irmãos, mulherengo desde os quatorze anos e engajado na Marinha de Guerra,  e meu pai, civil e marítimo de bons anos de viagens, tinham uma enorme bagagem de narrativas eróticas interessantes.  Havia ali os que gostavam de futebol e muitas discussões sobre o tema, algumas calorosas e exaltadas.  
Era um boteco com variedade de assuntos: não limitados aos casos de lascívia, meu pai e meu irmão mais velho, ambos chamados Diógenes, colocavam muito em pauta a questão política, e os outros interlocutores, sempre em torno de dois a cinco,  expunham cada qual seu ponto de vista, e aqueles debates, embora eu fosse absolutamentealienado, me chamavam tanto a atenção quanto os relatos obscenos.
Havia realmente uma riqueza de assuntos nos botequins naquela época, e o interesse das pessoas era talvez despertado pelo fato de o Brasil estar em plena ditadura militar, sem poder dizer nada, ali pelos idos de 1973.  Mas as conversas também passavam pelo mundo artístico e outras questões do momento.  Um dia um homem em outra mesa falava sobre Rasputin, e o português do boteco riu e zombou daquele murmurando que discutia religião logo naquele ambiente.  Também ri, porque não sabia  das ligações do citado monge com  Catarina de Médicis, acreditando que o achincalhado realmente falava em religião.
Era grande a diversidade de temas dentro de um botequim: falavam em história, filosofia, zoologia, outras ciências, criminalidade, ações do governo e tentavam adivinhar o futuro que teria o Brasil.  Alguns atacavam veemente a ditadura, e  meu pai, socialismo e simpatizante do comunismo e despido de medo do risco de ser preso, torturado e morto com a pecha de subversivo(em virtude talvez da revolta e da cerveja bebida), era um destes raros.  Outras vozes, por outro lado, também se levantavam, mas  em direção contrária: defendiam com ardor os militares e a repressão.
Só aos vinte e quatro anos me politizei, quando meu irmão mais velho já morrera de câncer, e o meu pai, de acidente de trânsito.  Embarquei ali na esquerda (hoje não acredito mais em esquerda nenhuma), não influenciado pelo meu genitor, mas pelo grupo de conhecidos que frequentava, todos da minha idade e com grande interesse por MPB, história e coisas de teor social e político.  Mas isto já se deu após a abertura iniciada no governo Geisel, e tudo já se podia falar; aí a gente marretava mesmo os homens!  Não tínhamos o menor respeito ao governo dos militares e líamos avidamente os jornais da imprensa alternativa.  Uma parte do meu grupo não bebia, mas a que bebia levava aquilo tudo para os bares.  
Casei-me pela primeira vez e me afastei um longo tempo dos botequins.  Perdi o contato com os antigos convivas.  Com cinco anos de casado caí na gandaia e comecei a beber no centro da cidade, e minhas conversas passavam pelos caminhos que aqui menciono.  Aos quarenta anos me meti em outro casamento e fiquei mais dois anos afastado dos bares, só bebendo em residências e indo poucas vezes aos botecos, onde comecei a notar um empobrecimento  de idéias.  Havia muita alienação e incultura nos anos 1970 e 1980, mas a partir da década de 1990 a coisa piorou muito:  a ignorância imperou, tomou corpo e achatou as idéias, e hoje bebo com raras pessoas, justamente aquelas que têm assuntos com conteúdo, porque entendo que a bodega é, além de um lugar de pura descontração, onde também deveria haver uma riqueza temática como a que encontrei entre 1973 e 1992 ou 93.   
A grande verdade é que o botequim é uma síntese, um grande medidor do que as pessoas e a  sociedade vivem, sofrem, pensam e respiram.  Percebendo isto, em 1980 escrevi "Mesa de Botequim", finalizando o poema com a estrofe "mesa de botequim, tu és o mundo".  Fico triste em deduzir que, ao menos dentro dos bares, a consciência simplesmente se calou ou, o que é pior, se suprimiu, sofrendo os reflexos do deprimente declínio cultural por que vem passando o Brasil.

Barão da Mata

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